“Mais do que entender seus filhos, os pais precisam saber como educá-los”

Um respeitado psiquiatra infantil explica como uma separação sem sofrimento ajuda a criança a crescer.

KÁTIA MELLO

De quatro décadas de trabalho com crianças com problemas psicológicos, o psiquiatra francês Marcel Rufo extraiu lições sobre dificuldades comuns a todos os pais – como o meio-termo entre equilíbrio e superproteção e a abordagem da sexualidade dos filhos. Rufo discute essas questões em dois livros recém-lançados, Me Larga! Separar-se para Crescer e Tudo o Que Você Jamais Deveria Saber sobre a Sexualidade de Seus Filhos (editora Martins Fontes).

ÉPOCA – Por que o senhor diz que os pais de hoje querem compreender os filhos, mais que educá-los?

Marcel Rufo – Os pais de hoje fizeram progressos extraordinários em relação aos de antigamente. Os filhos nunca foram tão bem criados. Do ponto de vista físico, corporal, não há mais preocupações. O problema que resta aos pais é se os filhos vão ser felizes e inteligentes. Para isso, é preciso compreendê-los. Hoje, os pais, mais que educar, tentam entender seus filhos. E compreender é mais democrático que educar. Houve uma “democratização” da família, que virou uma espécie de sindicato em que todos podem falar e debater. É por isso que os filhos, que não são bobos, não nos abandonam mais. Eles têm mais dificuldade para partir que para ficar.

ÉPOCA – Isso quer dizer que o progresso dos pais não é necessariamente bom?

Rufo – Os pais progrediram, mas é preciso que aprendam a não ser tão bons assim. O psicanalista inglês Donald W. Winnicott (1896-1971) criou um conceito muito interessante, o de “good enough mothers”, “mães boas o suficiente”. Esse termo mostra bem o que é preciso fazer. Ser um pai mediano, e não excelente, ajuda as crianças. No fundo, os filhos nos amam por nossos defeitos, mais que por nossas qualidades.

ÉPOCA – Como evitar a superproteção?

Rufo – Separar-se de uma criança é respeitar seu gosto pela aventura e pela descoberta. É preciso, de vez em quando, deixar segredos para que os filhos façam suas próprias descobertas, o que não ocorre quando os pais estão sempre presentes. Cabe às crianças, sozinhas, “redescobrir” as coisas que nós mesmos descobrimos quando tínhamos a idade delas.

ÉPOCA – Hoje é comum que crianças façam terapia. Com que idade elas podem fazer análise? E com que idade se pode prescrever medicamentos para tratar problemas psicológicos?

Rufo – Muito cedo. Pode-se fazer análise com 6 ou 7 anos. O mais comum é que se comece com 13 ou 14. Quanto a medicamentos, não gosto muito deles. Prefiro formular hipóteses sobre o futuro da criança e cometer equívocos na análise a receitar remédios. O psiquiatra deve prescrever a si mesmo, como se fosse um medicamento. Meu melhor remédio é a palavra.

ÉPOCA – O que o senhor pensa das famílias em que, por conta das separações, os filhos tem dois pais e duas mães?                                                                                  

Rufo – Não é tão ruim assim. A partir do momento em que os pais se separam, é melhor ter um padrasto e uma madrasta que ter o pai ou a mãe isolados. Quando os cônjuges que se separaram se recompõem em um casal, isso ajuda a restabelecer a afeição.

ÉPOCA – Qual é sua opinião sobre a guarda compartilhada, em que pai e mãe dividem por igual o tempo com os filhos?

Rufo – Não gosto. Crianças precisam de um único lar, mais que de pais que se revezem. Na guarda compartilhada, a criança não veste o luto da família perdida: ela sempre vai acreditar que tudo pode recomeçar. Creio que ela só funcione em casos excepcionais, de famílias muito inteligentes, com excelentes condições financeiras e em que pai e mãe não vivam muito longe um do outro.

ÉPOCA – Que sistema o senhor considera ideal, então?

Rufo – Um sistema melhor seria outro tipo de alternância. Por exemplo, de 0 a 3 anos, o filho fica com a mãe; de 3 a 6, com o pai; de 6 a 12, com a mãe; e assim por diante. Essas idades correspondem às fases da escola: maternal, ensino fundamental, ensino médio… É bom que o pai reivindique seu direito sobre os filhos, mas quando eles são pequenos nada substitui a mãe.

ÉPOCA – Como o abandono e a posterior adoção afetam o futuro da criança?

Rufo – Como psiquiatra, vejo muitos casos difíceis de filhos adotivos. Toda criança adotada sonha com a família biológica. Vou dizer uma coisa que pode parecer surpreendente: é mais difícil ser filho adotivo em um meio socialmente elevado que em famílias modestas. O motivo é que, numa família rica, a criança tende a ser fiel a sua origem biológica “misteriosa”, e não quer ser como a família que a acolheu.

ÉPOCA – Qual seria a melhor forma de tratar os bebês candidatos a adoção?

Rufo – Meu modelo teórico é um que foi adotado por uma instituição para menores abandonados de Budapeste, na Hungria. Lá, uma cuidadora fica 18 meses, às vezes dois anos, sempre com o mesmo bebê. A mãe pode não estar por perto, mas esse sistema funciona como uma espécie de “suplementação maternal”. E isso ajuda muito o bebê.

ÉPOCA – Muitos menores abandonados acabam na delinquência juvenil. O senhor acha que uma criança que sofreu com o abandono é recuperável?

Rufo – A diferença entre o tratamento psiquiátrico de um adulto e o de uma criança é que, com as crianças, tudo ainda é possível, nada é definitivo. Um menor abandonado pode encontrar uma boa família adotiva; pode ter um professor notável; pode ter grandes amigos; pode viver uma bela história de amor. Nessas condições, a criança adotada pode se sair bem na vida.

ÉPOCA – Por que o senhor diz que as crianças precisam mentir?

Rufo – Quando uma criança de 2 ou 3 anos mente, isso quer dizer que ela pensa. Sou fã da mentira. Adoro crianças que mentem. Quando um menino me diz: “Já fui a três psiquiatras, e não adiantou nada”, e descubro que não é verdade, fico maravilhado. E digo isso aos pais. É um desafio que a criança impõe, uma bela forma de resistência. Às vezes, a mentira é uma forma de enfrentar uma realidade que é difícil.

ÉPOCA – Por que os pais, em sua opinião, interferem excessivamente na vida sexual dos filhos?

Rufo – Porque são idiotas (risos). Assim como nós só adquirimos nossa própria sexualidade porque ignoramos a de nossos pais, é preciso que os pais “ignorem” a dos filhos.

ÉPOCA – Quais os casos mais difíceis que o senhor enfrentou como psiquiatra?

Rufo – Os de filhos desprezados pelos pais. Aqueles que os pais não acham inteligentes e dizem “você é muito burro para entender o que eu digo”. A sevícia psicológica é quase tão ruim quanto a sexual. O abuso psicológico é terrível porque você não é reconhecido aos olhos daquele com quem deseja se parecer. Costumo dizer que os pais têm de ser “torcedores” do filho, assim como se torce pelo Boca Juniors.

                      Revista Época – Edição nº 502 – 14/01/2008

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