Um dos temas discutidos sobre a questão do negro no Brasil apresenta a temática da descolonização do conhecimento como foco. Fala-se sobre a circulação do saber como estratégia de construção e reformulação social, tendo em vista a existência da desigualdade, sobretudo de raças, como papel de estruturação dos grupos sociais na pátria Brasil.
Sob uma perspectiva foucaultiana¹, o dispositivo de domínio do saber é utilizado com equivalência em relação ao poder. Quem tem acesso e quem transita pelos lugares de saber, estabelece relações de domínio com aqueles que possuem sua ascendência ao saber barrada em sua trajetória. Quando se conversa sobre descolonização do saber, aborda-se a questão do acesso ao ensino de qualidade na educação de base (ensino fundamental e médio) e acesso as universidades públicas e privadas pela população de poder aquisitivo baixo majoritariamente negra. O que representa dizer que, quando olhamos para a questão do negro no Brasil estamos cuidando da questão do povo; da base da pirâmide de classes.
Aproximar essas camadas da população à aquisição do conhecimento é ampliar e agregar a rede de construção de saberes, é permitir letramento à comunidade, é tornar pífio o dispositivo de opressão que o saber pode tornar-se. É distribuir o “lugar de fala”, como denuncia a socióloga Djamila Ribeiro². O acesso à educação é estratégia de abalo às estruturas sociais existentes, e decadentes, que resultam em aumento da pobreza e aumento do sofrimento. Essa exclusão, na experiência de escuta de pessoas negras em consultório de psicanálise, é sentida como diferenciação e abismo social, é vivida como mal-estar e reflete em sofrimento psíquico intenso. Reedita no psiquismo a ancestralidade dos tempos de escravidão.
Nessa medida, surge aqui o pensamento sobre a psicanálise descolonizada. E porque não dizer, “enegrecida” uma vez que o avanço e a notícia de vanguarda trazida por ela também diz respeito ao sujeito negro. Não desde a origem desse saber, pois nasce no centro burguês e “embranquecido” no século XX – com a publicação da obra Interpretação do Sonhos (1900) – , mas logo adiante na sua história, quando rompeu com as barreiras da cartografia e Sigmund Freud começou a estudar e construir produções teóricas que envolveram o surgimento das ciências dos povos tais como a Antropologia. Os temas sociais e culturais foram peça chave para a escrita do texto “Totem e Tabu” (1913), que inaugurou a escrita dos textos sociais e antropológicos freudianos. Esses textos oferecem faceta rica para a escuta do povo negro. E não só.
Há na psicanálise aporte teórico do saber sobre as massas. Existe no seu seio a construção de conhecimento sobre o homem marcado pelo social. Quando se fala sobre sujeito, para a psicanálise, estão intrínsecos ao conceito os seus enodamentos com o laço social – conceito criado por Jacques Lacan a partir de Freud. Com a linguagem, o sujeito é marcado racialmente e fala a partir de um lugar.
Ao tratar da psicanálise na atualidade a historiadora e psicanalista Elizabeth Roudinesco no texto Retraimento individual e Mal-estar coletivo (1989) ³ diz: “a massificação do movimento psicanalítico é o produto de uma dupla revolução […] ligada a democratização da instituição escolar universitária, permitindo que outras camadas da população acendessem ao saber psicanalítico e […] ligada à história específica das instituições freudianas. ” (p.45). Essa última é referência às escolas de formação em psicanálise. E a autora continua dizendo que para a psicanálise existir é preciso “um ensino independente das demais instituições (médicas, universitárias, estatais, etc.), uma liberdade de fala e associação, e um reconhecimento “consciente” do inconsciente” (p. 46). É preciso um Estado de direito como afirma a historiadora.
Ainda hoje no Brasil os negros têm dificuldade de acesso a esse saber seja na procura por tratamento seja na sua formação como analista negro. Apesar de Roudinesco defender que há muito a psicanálise deixou seu berço elitista, quando partimos para os grupos de analistas aqui no Brasil ainda existe um abismo a transpor. É preciso reconhecer o percurso dos analistas negros dentro das instituições de formação, é preciso abrir canais de escuta e abertura para a enunciação da fala negra. Do lado dos negros resistência e do lado dos brancos abertura para a escuta.
Se pegarmos a experiência da primeira mulher psicanalista no Brasil Virgínia Leone Bicudo (1910- 2003), negra e neta de escravos, notamos os impasses e muros que se apresentaram à sua formação nos anos 70. Com episódios de não citação do seu trabalho, episódios de esquecimento dos seus méritos e negação dos seus traços identitários. Em 1955, Virgínia participou de projeto intitulado Unesco-Anhembi que desconstruiu a tese do Brasil como um País de democracia racial; o seu trabalho aparece como apêndice da pesquisa e em segunda edição não é citado apesar de ser fundamental à compreensão do mito da democracia racial.
Virgínia Bicudo viveu os desafios da luta de gênero, pois mulheres não frequentavam os meios analíticos e do “preconceito de cor”, como a mesma se referia em relação ao racismo. Seu trabalho “A incidência da realidade social no trabalho analítico” (1972) é referência nos estudos sobre psicanálise e questões étnico-raciais.
Existe grande diferença entre saber enquanto matéria e o saber sobre o inconsciente. Jacques Lacan em 1964 no ato de formação da “Escola Freudiana de Paris” defende uma psicanálise ao alcance daqueles que a partir do Ato de envolver-se com o ensino proposto por Sigmund Freud são convocados ao trabalho analítico, no sentido da transmissão e do desejo de saber. Lacan (1964) afirma: “Desta fundação podemos destacar, antes de mais nada, a questão de sua relação com o ensino, que não deixa sem garantia a decisão do seu ato” (p. 242).
Existe uma relação entre o querer saber e o desejo do analista, como nos diz o psicanalista Marco Antônio Coutinho Jorge no texto O desejo de saber como laço entre analista: um comentário sobre a “nota italiana”³ diz: “o surgimento de um analista estaria intrinsecamente ligado ao despertar desse desejo de saber” (p.249). E, para Lacan, outro ponto chave para o percurso do analista é o laço entre os analista, por isso pensa seu ensino também articulado ao grupo. Envolvidos pela transferência de trabalho.
A formação do analista passa pelo reconhecimento do grupo de um lugar de desejo. Um lugar de fala. E sobretudo um lugar de escuta.
¹ Michel Foucault (1926 – 1984) teórico da filosofia, história e psicologia.
² Djamila Ribeiro, O que é lugar de fala?, Belo Horizonte, Letramento, 2017
³ Marco Antônio Coutinho Jorge [organização], Lacan e a formação do psicanalista, Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2006
LACAN, J. Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
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